quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Arquitetura da memória



O dia estava tão cinzento como na primeira vez que desembarcou no Heathrow, ainda sem compreender uma frase completa em inglês, atrapalhado com as esteiras para retirada das bagagens. A fluência no idioma, o terno bem cortado e a reserva no Hilton marcavam a distância entre o Caio Brandes de agora e o menino da década de 90 que viera para um curso intensivo e acabara casando com a musicista da qual se despedira em definitivo na cidade de Coimbra - hoje ela provavelmente mal lembra de sua existência.
Talvez a decisão de entrar na concorrência mesmo sabendo da estreita margem para criação, já que a rede mantinha um padrão visual com raras variações de continente para continente, tivesse alguma relação com a oportunidade de voltar à Inglaterra.  Hyper Books, já não gostava da pretensão embutida na marca, mas a antipatia ganhou reforços quando chegou à sede da companhia.
Ao invés de estar dentro de alguma das grandes livrarias localizadas em endereços charmosos e quase acolhedores – já que nenhuma megastore consegue ser realmente um lugar aprazível – , a sede da corporação ocupa o décimo quinto andar de uma torre envidraçada na Broadgate Tower. Enquanto aguardava o diretor de marketing, encarregado de acompanhar o processo de expansão da rede no Brasil, o brasileiro se mantinha imóvel na poltrona de couro escuro, pernas cruzadas, braços apoiados no estofado que imitava um modelo antigo e queixo apoiado no suporte formado pela mão direita. Os olhos vasculhavam a sala acarpetada em busca de alguma referência ao negócio. Seu imaginário esperava se deparar com uma sala cujas paredes revestidas de madeira nobre guardassem as edições mais relevantes na história da livraria, ou imagens das lojas mais antigas antes que a rede expandisse seus tentáculos para fora da Europa. Ao contrário disso, o local delimitava os espaços com divisórias de vidro temperado e persianas metálicas. Não se percebia quase ruído, talvez em função do pequeno número de ocupantes daquele andar.  A recepcionista o conduziu até a sala de espera, mostrou os dentes um pouco amarelados na moldura rubro intenso e prometeu que Mr. Kasper estaria disponível em dez minutos, no máximo.
Foram treze, acompanhados com rigor no Tissot com pulseira de couro preto que Caio reservava para ocasiões relevantes. Mr. Kasper, um sujeito atarracado e impaciente, deu instruções secas quanto às prioridades da nova loja – disponibilidade de espaços que pudessem ser negociados com as editoras para dar visibilidade aos títulos capazes de pagar pelo destaque do seu produto, caixas posicionadas de modo a não atrapalhar a circulação nas seções com maior lucratividade – DVD´s musicais e livros infantis – e um espaço com capacidade para realização de eventos que não interferisse no acesso às gôndolas dos mais vendidos. As cores seguiriam o padrão utilizado em toda a rede e estavam apontadas no contrato. Nenhuma recomendação para visitar a maior loja, em Londres mesmo, antes de iniciar o projeto e o aviso de que a entrega seria fiscalizada pelo próprio Kasper. Se não saísse da visita completamente satisfeito, o bônus previsto no contrato não seria aprovado - alertou o executivo.
Caio havia pensando em pedir para conversar com outros responsáveis da rede, para compreender a filosofia organizacional e adequar, na medida do possível, o espaço para que refletisse os valores e o modo de trabalhar, mas a acolhida não lhe pareceu propícia. Quando voltasse ao Brasil tentaria contatos informais com a equipe.
Saiu da reunião com ânimo nenhum para pensar no projeto. Lembrou de Ruth tocando violoncelo, mas não tinha seu endereço. Enquanto aguardava o táxi para levá-lo ao hotel, fingiu para si a possibilidade de percorrer novamente os trajetos da época em que desenhava fachadas de prédios históricos para arrecadar alguma grana, mas a neve não parecia disposta a dar trégua. 

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